sábado, 2 de julho de 2011

Geléia ontem, geléia amanhã

Naquela ocasião era uma cadeira normal, não como essa. Mas ela se sentia como a cadeira. Pequena.

E também a cadeira tinha muita memória, muita história. Foi o avô dela quem fez. Ele sempre teve muito talento para as coisas manuais, tinha uma oficina no fundo da casa.

A cadeira ela achava que tinha mais de 40 anos. Ele fez essa e uma outra, parecida, mas mais arredondada, quando nasceram os dois primeiro netos. O Edu e a Lu. Havia um trato, as duas cadeiras não podiam sair da casa dos avós. Depois veio a Patrícia, depois ela. Depois sua irmã e o Ju, depois o Victor, seu primo. E depois ela achava que as crianças pararam de ligar para as cadeiras. Essa cadeira estava enconstada na chácara dos pais dela, num canto, ao lado de uma bandeira do Brasil, uma do Corinthians e uma da Espanha, que ela não sabia porque, o pai tinha na sala.

Ela escolheu essa cadeira por esses dois motivos.

Ela chegou.

Depois de procurar muito, escolheu um lugar. Se sentou.

Seria como se.... A Dinah passasse. Depois o Plínio. Depois o Marcinho apressado. Depois o Faber cheio de malas. A Dinah sentaria ao seu lado e comeria um sanduíche, sem percebê-la. O Plínio passaria de novo e a encararia. O Marcinho passaria falando ao celular. O Faber passaria de novo. A Dinah levantaria e sairia. O Plínio voltaria e diria que trocaria o café, que ela trocava por uma confidência, pelo número do seu telefone. Marcinho passaria assobiando. Era uma multidão.

Tinha barulho de ônibus, de criança, de televisão. Chamados no microfone.

Ela, como outros, esperava. Não um ônibus como eles, mas um encontro. Ela ali. Em um lugar em que ninguém parecia estar.

Se sentia invisível. Pensava que a vida inteira era isso; a gente só passa; ou espera. Daí pensava no começo do universo. E no fim. Mas se o universo pudesse chegar a um fim por que ainda não o teria feito?

Então chegou uma mulher. Não havia outro lugar para se sentar porque as cadeiras estavam ocupadas, ou molhadas, talvez mijo.

Ela pediu uma confidência.

A mulher não entendeu.

Ela pediu uma história, um segredo.

A mulher era negra, mais de setenta anos. De Itaberaba.

Contou que a infância tinha sido muito pobre. Que o irmão de quatro anos morreu aguado porque viu uma mulher comendo paio com torresmo. Ela pensou que eles tinham fome.

A mulher se lembra da mãe, do irmão, da roça, do milho, da amendoim, da cidade, de quando chegou em sp, do trabalho como doméstica.

A mulher conta que gosta da cidade. Que tem três filhos. Que está indo para Ilha Comprida. Gosta de lá, vai a praia, passeia.

Enquanto a mulher fala, a mulher se lembra. Enquanto a mulher fala, ela imagina.

A mulher se lembra das paisagens, das pessoas, dos cheiros, dos medos. Ela cria tudo isso na sua cabeça.

Elas se despedem. Ela pensa que a gente habita pouco o presente. Pensa na Alice no País das Maravilhas: por que geléia ontem, geleia amanhã e nunca geléia hoje? Pensa por que nunca disse ao avô o quanto gostava dessa cadeira.

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